quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Logo-Sonho V

Um velho muito velho toma conta de um bebê que ainda não sabe andar. A criança fica dentro de um cercado, numa sala escura com cortinas pesadas. Eu e outras mulheres falamos que aquele bebê nunca vai crescer nem aprender a andar daquele jeito, que ele precisa brincar num lugar aberto, tomar sol.

Ideia: É preciso mudar, renovar o jeito de cuidar do bebê ou ele não crescerá saudável nem feliz;
Música:
Cor: Marrom escuro;
Gosto: De mofo;
Textura: Seca, de lixa.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Logo-Sonho IV

Eu e meu par andando de carro por uma estrada grande, moderna, cheia de viadutos de concreto, mas deserta. Faz sol e ouço ecoar uma voz grave e profunda: – Ele vai morrer agora! Penso (respondo) que não é possível, pois ele está dirigindo o carro e se ele morrer agora vou morrer também. A voz me diz para mandá-lo parar o carro. Assim que o carro para, o homem ao meu lado cai morto sobre o meu colo.

Ideia
: Morrer algo repetitivo que trago comigo para deixar brotar uma coisa nova;
Música: I can see clearly now;
Cor: Amarelo e cinza;
Gosto: Gosto de susto, de medo;
Textura: Seca.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Larguei!

Larguei o blog... Devo ter perdido todos os meus assíduos leitores... Fui atropelada pelos afazeres de fim de ano, correria para produzir joias antes do natal, ganhar algum dinheiro, enfim, tive que largar alguma coisa e larguei o blog. Não por desamor, não por desconsideração. Acho que foi mais uma falta de disposição para me trabalhar internamente, coisa que eu faço quando escrevo qualquer texto. Quem sabe depois desse recesso eu tenha uma ebulição de momentos psíquico-literários. Tomara! Mas só para não perder o gostinho, vou postar mais um logo-sonho na sequência.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Férias Intermináveis

Até parece que não tenho mais um blog. Faz tanto tempo que não escrevo nada, nem tenho lido os dos amigos... Além de um monte de trabalho acumulado são essas férias infantis intermináveis. Não há rima, trava-lingua, poema, história, bicicleta sem rodinha (sim, elas aprenderam a andar sem rodinha durante as férias) ou qualquer outra atividade criativa que dê conta de crianças em casa, entediadas e solicitando a toda hora. Não achei tempo pra trabalhar minhas ideias e escrever nada de interessante por aqui. Parece que andei me abandonando. Nesse meio tempo, ainda fiz aniversário. Nem tenho mais a desculpa de estar no inferno astral. Voltarei. Prometo a vocês e a mim mesma. Logo, logo. Não desistam, queridos companheiros de viagem, não desistam. Até breve!

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Brincando de rimas

Férias escolares, crianças em casa, o que fazer? Brincar de fazer rimas e trava-línguas com elas. Uma delícia:

1
Marina mira
o maravilhoso
Mar que mora
Na sua janela.

2
Luiza olha
Luminosa
A Luz do
Luar.

3
Clara comeu
A comida do Cóqui
Para correr
Como ele.

4
Adilson adentrou
A despensa
Da cozinha
Do seu Wilson.

5
Luiza linda
Lascou
Uma lambida
No suculento sorvete.

6
Marina amorosa
Mordiscou
A macia mão
Da sua mãe.

7
Quem quer comprar
Um cachorro
Queixoso que se chama
Cóqui?

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Logo-Sonho III

Três mulheres grávidas na escada que leva ao primeiro andar do MASP. A mãe e suas duas filhas. O Vão do museu está coberto por uma lâmina de água do mar.

Ideia
: A vida que mora dentro da gente é tão intensa quanto a água. Pode ocupar qualquer pedacinho. Ou fazer a gente implodir;
Música: Fallen Angel do King Crimson;
Cor: Verde azulado bem claro;
Gosto: De lágrima;
Textura: De clara de ovo.

Logo-Sonho II

Um sujeito atira bananas-torpedo em minha direção. Acho que quer me embananar. Será que sou tão banana?

Ideia
: Discriminar o que é meu do que é dos outros para não me embananar com as questões alheias;
Música: Pensei no Jimi Hendrix tocando o hino norte-americano misturado com sons de bombardeios em Woodstock. Mas pode ser algo erudito grandioso (algum Heavy Metal erudito). Vou pensar e posto se me vier uma ideia. Acabou de me ocorrer uma dos Novos Baianos (falando em banana, quase que saiu bainanos...) Besta é tu! Vai bem com a ideia;
Cor: Amarelo-ouro;
Gosto: Metálico, ferroso (não consegui sair do gosto do sangue);
Textura: Arenosa.

Sugestão do Bruno para o Heavy Metal erudito. Gostei.

Mars: The bringer of war, de Gustav Holst. O link não está entrando, mas está aqui embaixo para quem quiser ir ao Youtube ouvir a música.
http://www.youtube.com/watch?v=L0bcRCCg01I&feature=related


quarta-feira, 24 de junho de 2009

Logo-Sonho I

Meu rosto como o de um pugilista, com o nariz quebrado.

Ideia (lição, interpretação, moral, não sei bem como chamar): De vez em quando a vida atropela a gente (ou vice-versa);
Música: Please don't let me be misunderstood. Versão da Nina Simone. (Não sei porque sempre que penso no sonho essa música me vem à cabeça). Particularmente o refrão:
'Cause I'm just a soul whose intentions are good.
Oh, Lord, please don't let me be misunderstood;

Cor: Azul petróleo. Tudo muito escuro. Contraste com o vermelho sangue e o branco alvo do rosto desfigurado;
Gosto: Amargo salgado;
Textura: Viscosa.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Primeira Paisagem

Para meu pai



Um arrepio subiu do lábio superior às têmporas do menino, enquanto o gosto viscoso do sangue lhe salgou a boca. O mundo era ainda maior e mais perigoso do que imaginara. Por onde andaria sua mãe naquela vastidão cinzenta de concreto e asfalto? Em que silêncio morno das ruas agitadas que ele desconhecia? Em que borrão de saia esvoaçada estariam as curvas doces e suaves das pernas da mãe?

Mãe. Primeira paisagem. Raios tépidos de sol aconchegante, leite morno, macio e adocicado. A mãe saíra logo cedo, em um dos momentos de euforia que a levavam às intermináveis compras. Saiu envolta naquela aura mágica e estranha que João conhecia quando percebia a mãe falar mais do que de costume, sorrir mais do que de costume, se perfumar mais do que de costume. O rastro exótico e desconexo da mãe desceu as escadas e apertou o rosto do menino contra seu ventre.

– Meu menino querido, meu caçulinha predileto…

João sorriu, desajeitado, algo incomodado. A mãe não o olhava diretamente nos olhos. As mesmas mãos que o apertavam contra o colo tinham um toque aflito, apressado, num paradoxal movimento de aconchego e abandono ao mesmo tempo. Com o olhar escorrendo pela porta em direção à rua, a mãe fez menção de sair e, imediatamente, João agarrou-se a sua perna.

– Onde você vai? Não vai, não. Fica aqui comigo.

– Meu caçulinha predileto, meu menino querido…

Num movimento ágil ela se desvencilhou do abraço apertado, levantou o menino no ar, rodopiou com ele pela sala, terminou num beijo suave em sua testa, e escapuliu fugaz pelo portão, rumo à histeria da cidade.

João estava sozinho. Ele e a casa escura que exalava aquele estranho e inexplicável perfume. Sentou-se no primeiro degrau da escada, logo ao lado da curva em que ficava uma enorme concha de caramujo. Atraído por suas saliências e depressões, João pousou a mão sobre ela e sentiu sua textura macia. Mesmo as pontas mais finas eram suaves, gastas e arredondadas pelo tempo. Um tom de salmão mais escuro se derramava pelas extremidades, escorrendo mais claro para o meio, quase branco. Na entrada da cavidade, marrom caramelado, cor de doce de banana. Será que a concha trazia o mar dentro dela? Nas mãos de mamãe as conchas sempre têm som de mar. Será que o mar está na concha ou nas mãos de mamãe?

João levantou a concha e tentou levá-la ao ouvido. Mas ela era grande e pesada demais para seus finos braços de cinco anos, não ficava equilibrada a ponto de que seus ouvidos pudessem desvendar o segredo das mãos de sua mãe. Tornou a colocar cuidadosamente a concha em seu canto, temendo um desastre e um terível castigo. Sem a mãe, a penumbra da casa começou a lhe causar certa angústia. Quis sair para o sol e para o ar livre.

Juntou algumas tralhas e foi brincar no quintal da frente. Em suas narinas recendia o perfume exótico da mãe. No ombro e no rosto ardia o comprimir incômodo de seu ventre e de suas coxas. Na testa, estalava de leve seu beijo e os olhos guardavam manchas tênues da sua imagem desfocada. A presença da mãe lhe escapava sutilmente pelos sentidos atordoados. João caminhou até o portão e deu uma espiada furtiva na rua, erguendo-se nas pontas dos pés e apoiando-se de leve sobre a grade. Distraidamente destrancado, o portão abriu-se devagar. João saiu, titubeante, para a calçada.

– Mamãe?...

A resposta foi um sussurro impreciso que se confundia com os sons da cidade:

– Querido…

Correu em direção à rua movimentada, atraído pela voz da mãe misturada ao alvoroço das pessoas e dos automóveis que a abafavam nos seus ouvidos. Mamãe deve estar perdida nesse monte de gente apressada e nesse barulho que não para. Gosto quando mamãe fica em casa, quando faz doce de banana, fecha as cortinas e deixa a sala escurinha para descansar enquanto empurro meu caminhão de papelão pelo tapete e cuido dela. Gosto quando mamãe senta comigo no primeiro degrau da escada, levanta a concha pesada e me mostra o som do mar que mora lá dentro. Ou que mora nas mãos de mamãe…

João também parecia preferir o alheamento da mãe quando se voltava para dentro. Estava acostumado a ele. Sua tristeza vagarosa, perdida, ecoava surda no escuro da casa recolhida, placidamente suspensa, como uma inspiração que não acabasse nunca, como aquele estranho mar que morava não sabia se dentro da concha ou nas mãos da mãe.

João continuou caminhando ligeiro. Às vezes distraía-se nos vãos irregulares dos muros, no fluxo da trilha de minúsculas formiguinhas carregando folhas imensas, nas cores dos portões. Sobressaltava-se com um ruído mais intenso de buzina ou com uma manobra rápida de um automóvel. Mas tinha um objetivo claro: resgatar a mãe. Depois de muito andar sob o sol forte, cruzar como que milagrosamente ruas movimentadas, seguindo a voz da mãe misturada com o zum zum zum da cidade, João sentou-se, exausto.

Recostou-se em um muro morno de sol e deixou pender a cabeça sobre os joelhos. Mamãe sumiu. A voz dela está por todos os lados, sempre de longe, baixinha. Por que será que ela está fugindo de mim? Foi quando João sentiu algo encostar em sua orelha direita e um ar quente entrar em seu ouvido acompanhado por um som abafado. Assustado, virou a cabeça e deu de cara com o focinho preto e úmido de um enorme cachorro marrom.

– Ahn!!!!..... Manhêee!

Levantou-se num sobressalto e pôs-se a correr o mais depressa que podia. Olhava para trás de tempos em tempos para se certificar de que o cachorro não o seguia. Uma pedra solta logo à frente tirou-lhe o apoio do pé e o fez cair pela calçada com a boca em uma lata enferrujada deixada sobre o passeio. Sentiu o arrepio que subiu-lhe às têmporas e o gosto do sangue salgado na boca. Cadê a minha mãe? Por onde será que ela anda?

Um braço adulto, firme e delicado levantou-o do chão. João teve ímpetos de fugir. A senhora Ono olhou-o no rosto, colocou-o carinhosamente sobre o colo e chamou o marido:

– Toshima, não é o filho da Dona Aracy? Como é que será que ele veio sozinho até aqui?

terça-feira, 26 de maio de 2009

O mundo no banheiro

Outra vez o banho...

Finalizando apressadamente o banho da minha filha mais velha (que já estava atrasadíssima para deitar), ouço da própria: já pensou como seria morar no banheiro?

Ops, para tudo! Sem a poesia de uma Madeleine do Proust, mas com toda a poesia que pode ter a minha memória, simplesmente porque é minha e me diz respeito.

Quando eu tinha justamente sete anos, a idade dela, eu vivia me fazendo exatamente a mesma pergunta. Fechava a porta, sentava na privada e começava a imaginar que onde ficava a banheira haveria uma cama embutida que desceria da parede quando eu apertasse um botão. Embaixo da pia ficariam não apenas remédios, desinfetantes, rolos de papel higiênico, como panelas, louças, talheres, toalhas, toda sorte de coisas de cozinha, bem como minhas roupas. A mesa, por sua vez, ficaria (não sei bem como, daí o divertido da imaginação) sob a pia e de lá sairia mediante um puxão. O vaso seria, além da bacia sanitária, a cadeira para se sentar à mesa. Uma coisa meio arquitetônica, meio futurista, um pouco ficção científica, um pouco desenho animado (falei às meninas sobre os Jetsons e elas já se interessaram em assistir). Fui contando tudo isso a elas, em meio a risadas, que rememoração divertida... Mas não pude deixar de concluir (na esperança de que a imaginação delas siga adiante da minha, que elas se tornem, tomara!, pessoas melhores e mais bem resolvidas do que eu) que infelizmente só um banheiro não seria suficiente para ser uma morada inteira. Banheiro tem que ser só banheiro, com seus cheiros e suas intimidades. Elas concordaram (para meu alívio naquele momento*) bem humorada e plenamente com a minha colocação e trataram de incluir o hall dos quartos na tal habitação mínima imaginária.

* E não é que logo agora acabou de me bater uma crise do tipo, pô, na imaginação não vale tudo? Então porque é que eu tinha que me preocupar em melhorar a imaginação das minhas filhas? Bom, foi neurose de mãe... Que mais eu posso dizer? Por outro lado, tenho certeza de que a imaginação das meninas é tão grande que vai se espalhar por tudo quanto é canto, que quem sabe elas ainda possam imaginar que todo o universo é a casa delas. Mas isso prometo deixar por conta das duas.

sábado, 16 de maio de 2009

Eu amo plastilina

Faz dias que tenho tentado fazer uns modelos de anéis em cobre (para depois fundi-los em prata). Primeiro esbocei algumas ideias; recortei pedaços de papel, curvei e dobrei para ter uma visão tridimensional e fiz alguns moldes. Parti então para o metal. Peguei algumas chapas de cobre que eu tinha no meu atelier e comecei a cortar, curvar, dobrar, amassar. O resultado foi uma coisa dura, cheia de pontas, limitada pelo uso das chapas, que funcionavam como uma folha de papel um pouco mais grossa e acima de tudo duríssima para conseguir as curvas que eu queria. Não deixava de ser completamente o que eu queria fazer, mas como a ideia era partir de várias curvas para obter um desenho geométrico mais orgânico, o método, definitivamente, não estava funcionando. Com certeza boa parte dessa limitação é minha, mesmo, eu gosto de ver as coisas tridimensionalmente, só o desenho não é suficiente para me convencer, e adoro trabalhar com as mãos. Só sei que vendo minhas filhas brincar de massinha, veio a idéia: plastilina! Plastilina é aquela massinha das animações. Todo mundo da minha idade (aqueles que tiveram infância) brincou com essa massinha e muitos já assistiram aos incríveis filmes feitos com elas. Hoje em dia, as crianças costumam usar umas mais macias, feitas de farinha, cheias de brilho, cores fosforescentes. Eu comprei logo uma branca. Um monte de plastilina branca. Afinal, como boa arquiteta da FAU (com seus vícios e virtudes), gosto de fazer modelos brancos, para ressaltar a forma, o volume, sem distrair o olho com outras informações. Apesar do cansaço que sentia ontem, não consegui me conter. Abri a massinha, enrolei, amassei, fiz plaquinhas, grandes volumes, tirei pedaços com uma colher, com uma faca, com a mão. Me diverti e consegui chegar a algumas formas bem mais parecidas com as que eu tinha imaginado. Mas o melhor de tudo é que dá até para trabalhar junto com as crianças. Eu amo plastilina.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Yo odio a los que tienen cáncer

“Yo odio a los que tienen cáncer.
Odio a los que luchan contra el cáncer y a las fundaciones amigas.
Odio a los gurúes alternativos, felices de mostrar el camino de la salvación.
Odio a los que interpretan y a los que comprenden y a los que saben lo que tengo que hacer. Odio a los que me lo dicen por mi bien.
A los que derrotan todo tratamiento. A los que reinciden.
A los que se mueren de cáncer, ésos son los peores.”

O texto acima é o início do livro de Patricia Kolesnikov sobre seu câncer de mama. Só quem já passou pela dura experiência sabe o que é sentir tudo isso como uma revolta contra o escancarar da morte, contra a exposição da nossa fragilidade, contra o medo de seguir vivendo sabendo que há um fim, seguir vivendo sem todas as respostas, sabendo que se morrerá sem boa parte delas, que nem o câncer nem seu tratamento nos redimem ou nos respondem a essas questões. Ele é uma coisa terrível, amedrontadora, cuja experiência seria preferível esquecer.

O livro é incrível. Quem recomenda é José Saramago em seu blog. Fala com todas as nuances sobre as reflexões da doente, a dor, o medo e a raiva, suas peripécias pelos médicos, o tratamento impessoal. Conta ainda as reações dos que estão ao lado, desde a postura dos médicos até o carinho da companheira, as visitas inoportunas, a angústia dos pais, seus medos, suas incertezas. Tudo com lirismo, humor e sarcasmo. Está disponível gratuitamente na internet (veja o link na foto da coluna ao lado).

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Triste vazio indizível

A Mulher dirige o carro na pista do meio. O sinal amarela e ela diminui. Um cara numa caminhonete sai da pista da esquerda e entra atrás dela. O sinal fica vermelho. Ela vai brecando suave, olhando pelo retrovisor, enquanto a caminhonete se aproxima um pouco mais depressa do que deveria. Solta o pé do freio um pouquinho e deixa o carro deslizar para cima da faixa de pedestres. A caminhonete vem e bate. Nada grave, dá para perceber. O passageiro do carro vizinho diz a ela que nada aconteceu. Ela diz que precisa ir ver, até por consideração, desce do carro e vai olhar o que aconteceu. O motorista da caminhonete (que leva um menino de uns 8, 9 anos) desce também, já xingando.

– Pô, sua vaca, você parou no sinal amarelo! Vaca! Burra!

Ele me chamou de vaca e de burra porque parei no sinal vermelho! Ela respira fundo e responde.

– Não, eu parei no vermelho.

E vai voltando para o carro.

– Você é burra, mesmo, sua vaca, filha da puta, o cara continua.

Ela perde a paciência, se vira e levanta um pouco a voz.

– Para de ser grosso, eu parei no vermelho!

Outra vez vai em direção ao seu carro. O cara pega a caminhonete e se aproxima para atropelar a mulher. É, para passar por cima daquela mulher que ousou parar no sinal vermelho e por isso foi xingada de vaca, de filha da puta e chamada de burra pelo machista que dirige o carro com pressa e acha que pode dar uma passadinha no vermelho porque o sinal acabou de fechar. Ela pula pra dentro do carro e se salva por pouco. De ser atropelada. Porque nessa hora a raiva lhe sobe à cabeça. O sinal abre e ela sai. Ultrapassa o assassino e vai, olhando para o retrovisor e pisando no freio de tempos em tempos. Berra, se desespera, fica indignada, se transforma numa assassina tão louca quanto o cara. Finalmente ele consegue ultrapassar e acelera. Ela sai atrás dele como uma maluca, berrando sozinha e procurando um carro da CET, ou da polícia, ou de quem quer que seja que possa fazê-la parar.

Até que, numa esquina, a caminhonete vira à direita e ela segue em frente. Ofegando, com os olhos vermelhos, o rosto todo molhado. Não há para onde ir, não há o que fazer. Restou apenas o triste vazio indizível.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Intimidade

Sempre que posto alguma coisa, por mais banal que ela possa ser, acabo me enamorando do texto. Leio, releio, leio novamente, torno a ler, não me canso. De vez em quando, gosto. De vez em quando, vejo só defeitos. De vez em quando, percebo a ideia empacada que quase apareceu, mas ficou submersa. Nesse movimento, vou procurando, colecionando e lustrando palavras. Às vezes, leio em voz alta e mudo a ordem da frase por causa da música. Outras vezes, de tanto ler, descubro uma palavra trivial que soa perfeita naquela situação. Mas sabe do que realmente tenho vontade? De escrever como se estivesse conversando com quem lê. Como se fosse um bate papo que contivesse coisas importantíssimas da minha existência. Como se eu revelasse os segredos mais íntimos de um jeito tão coloquial que o leitor nem fosse perceber essa intimidade.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Luara Lua

Esse texto é de ficção. É baseado em alguns fatos reais e em muita imaginação minha. Faz parte daquela tentativa (às vezes sem qualquer êxito) de tentar entender e aceitar as duras realidades da vida. Mudar, pelo menos na ficção, esse mundo tão difícil.

***

Luara Lua era o nome que ela tinha escolhido para si. Luara, de batismo, e Lua, que ela acrescentou mais tarde. Ela gostava da ênfase pleonástica: duas vezes lua. Ou melhor, três, pois mulher já é lua antes mesmo de ter um nome. Luara Lua era seu nome artístico. Passou a assinar assim em quase todos os lugares: no e-mail, no cartão pessoal, nos trabalhos de joalheria. Nome que revelava sutilmente algo do seu estar no mundo. Na verdade, ela se sentia muito mais solar que lunar. Era falante, tinha um sorriso largo, generoso, uns olhos pretos brilhantes. Ultimamente é que tinha descoberto que seu lado lua também era forte e presente. Mais forte e mais presente do que um simples nome. A realidade caíra sobre seus ombros tão violenta que mal conseguia ficar de pé.

Abriu a cortina do quarto e olhou a vista que entrava pela janela. Era uma vista bonita, bem do alto, que pegava os jardins e escorria inclinada e depois suave até o Parque do Ibirapuera. Ela gostava de olhar a cidade do alto. Dava uma sensação de distância e poder ao mesmo tempo. Distância daquela confusão, da energia caótica, e por isso o poder. Poder de olhar de longe e não se sentir engolida pela metrópole, pelo barulho do trânsito, pela correria das pessoas, pela agressividade dos motoristas, pela marcha impessoal dos pedestres. Fazia algumas horas que tinha se registrado no hotel. Precisava ficar sozinha de qualquer maneira. No seu apartamento, não poderia. Ficava em frente à casa do ex-namorado que era um pervertido sexual que tinha esmigalhado todas as suas convicções no amor, na raça humana, na possibilidade de salvação. Ela não era moralista, pelo contrário, mas o que ele fez não lhe era concebível de forma alguma. Era uma questão de ética, não de moral. Não queria encontrá-lo nunca mais, nunca mais. Por causa disso estava morando no apartamento que a mãe mantinha em São Paulo para ficar quando viesse à cidade. Vivia às turras com ela, uma relação para lá de difícil, baseada em culpas e cobranças, em diferenças intransponíveis. A casa da mãe também não era a sua casa. Gostava do pai. Mas ele tinha uma mulher com quem ela não sentia a menor afinidade. De repente, percebeu que não tinha mais casa, não tinha mais lugar. Nem em si mesma conseguia se sentir à vontade.

Por isso foi para o hotel. Já vinha pensando nisso há algum tempo. Mas aquela terça-feira tensa, esquisita, em que a lua virou e o mar ficou de ressaca lhe pareceu perfeita para ficar sozinha, ensimesmada com seus pensamentos, tentando relaxar e descobrir sua morada. Antes do hotel, porém, passou numa farmácia. Comprou um tarja-preta poderoso que deveria dar conta do desassossego que a ocupava. Comprou também, numa adega próxima, um vinho chileno de bom preço e de boa qualidade. Levava um celular sem crédito e o lap-top que ela poderia usar para se comunicar com as amigas caso sentisse vontade. Não sentiu nenhuma. Já tinha falado com algumas pessoas um pouco antes. Não queria pedir socorro. Ninguém poderia socorrê-la naquela viagem solitária, quem sabe sem volta.

Sentou na cama e olhou novamente a vista. Sentia o peso da solidão das coisas que tinha visto e ouvido e que não poderia dividir com ninguém. Mas não chorou. Apenas sentiu que aquele mundo que entrava pela janela não mais poderia ser a sua casa.

Tentou fazer a viagem inversa. Ligou o computador na tomada e entrou no seu orkut. O retrato colorido em que ela sorria, jogou fora. Um amigo fotógrafo tinha feito fotos ótimas umas semanas antes. Fotos em P&B, com ela vestindo preto, bem contrastadas, fortes, dramáticas. Escolheu uma em que estava de costas, leve, como num adeus alegre. No perfil, substituiu as clássicas definições físicas e de gosto musical, cinematográfico e literário pela letra da música do Chico e do Edu Lobo, Cantiga de Acordar. Se identificou particularmente com os versos que diziam: Tudo é uma ilusão/Os que estão aqui/Esses não estão/Em si. E, num pensamento mais ligeiro e leve, se lembrou dos quadrinhos do Laerte na Chiclete com Banana que terminavam assim: Ah! E não se esqueça. O mundo é falso! Achava, mesmo, que o mundo era falso, uma ilusão que depende do nosso olhar mais ou menos condescendente, compreensivo, receptivo. Depende de não estarmos em nós. No orkut também não conseguia encontrar a sua casa. Apenas o seu lado lua aparecia. Desligou o computador e partiu para o vinho.

Na primeira taça já sentiu um suave torpor de embriaguez. Tomava ou não tomava aquele sossega-leão que ela tinha comprado tão barato e sem receita na farmácia lá embaixo? Resolveu não decidir naquele momento. Deixou a caixinha na cabeceira e saboreou o vinho, mas continuou encarando ora a vista, ora a embalagem. Se ela tomasse todos aqueles comprimidos, como seria? Quem sabe encontrasse sua casa. Aproveitaria para apunhalar mortalmente a mãe, tirando dela justamente o que ela havia lhe dado, a própria vida; e o namorado pervertido, a quem não mais poderia se oferecer. Mas o que seria do pai? Da ex-namorada dele que era como uma mãe de verdade para ela? Do irmão? Não importava. Eles iriam ficar com seu corpo. Um troféu efêmero que teriam de enterrar, mais nada. Não deixaria um bilhete, um sinal, apenas a sua dor lunar inexplicável. Eles é que se arranjassem depois com as deles. Cada um sabe cuidar de si. Pois que se cuidem. Ela iria cuidar de si à sua maneira. Entrou na banheira com a taça de vinho na mão e se deixou largar. Sentiu o corpo mais leve, a angústia embriagada. Finalmente conseguiu se sentir um pouco melhor.

De volta à cama, encarou novamente a vista da cidade que já escurecia e abriu o remédio. Quem sabe amanhã eu tome a caixa toda, pensou, e tomou apenas um comprimido. Desfaleceu imediatamente. Dormiu horas a fio. Sem sonho, sem tristeza, sem alegria, sem nenhum sentido. Quando acordou já era dia claro. O sol brilhava contrastando com o céu azulíssimo do outono. Luara Lua via o sol novamente. Jogou a caixa de remédio fora, esmagando bem cada comprimido para que ninguém mais se sentisse tentado. Saiu à rua, se misturou à cidade e ligou de um orelhão para a amiga do curso de joalheria. Criaria coisas belas, colocando nelas todo seu lado lunar para não correr o risco de ser outra vez tragada por ele.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Homenagem à Moara


Não tem jeito, não consigo baixar a foto dela indo... então vou fazer igual à Patrícia e colocar ela bonita, beijando a vida.
Vai com Deus, Moara.
E ela foi...

Cantiga de Acordar (Chico Buarque e Edu Lobo)

Foi uma ilusão
Uma insensatez
Há que pôr o chão
Nos pés

Era como um trem
Que anda sem passar
Era um tempo sem
Lugar

Era uma ilusão
No interior
De uma outra ilusão
Maior

Tudo é uma ilusão
Os que estão aqui
Esses não estão
Em si

Do universo, o além
Faunos ou mortais
Vão restar mais nem
Sinais

Tudo o que se vê
É o sonho de algum
Pobre sonhador
Todas as estrelas
Todas as misérias
Todos os desejos
Tudo o que se viu
tudo o que se foi

Última ilusão
Amanhece já
Vai-se abrir o chão
Quiçá

A ilusão se esvai
É uma cena só
E a cortina cai
Sem dó

Vai cessar o som
A sessão já foi
Despertar é bom
Mas dói

Pedras vão rolar
Choram serviçais
Vão se espatifar
Vitrais
Tomba o refletor
Ardem camarins
Cai no bastidor
A atriz

Descarrila o trem
O pilar cedeu
Vai morrer meu bem
E eu

Num jardim fugaz
De espirais sem fim
Eu corria atrás
De mim

O homem se distrai
Dorme em boa fé
Sua sombra sai
A pé

Mas
Foi uma ilusão
Uma insensatez
Há que pôr o chão
Nos pés

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Silêncios

Há dias venho tentando escrever algo que me dê vontade de colocar no blog. Nada. Nenhuma ideia. Nenhuma palavra. Vejo apenas uma terra árida, que atravessa a garganta, entope as narinas e silencia os pensamentos. Ando inibida, incomodada, imobilizada. Não é para menos. O tema dos últimos posts foi, e ainda é, difícil para mim. Mas só o transformo em palavras na medida em que o vejo mais claramente, como quando estamos com a máquina fotográfica e damos um passo para trás para focar a imagem no visor. As manchas plásticas, com bordas impalpáveis e cores difusas tornam-se formas, bonitas ou feias, de cores mais precisas, tamanhos mensuráveis. Penso na vontade que temos de exorcizar acontecimentos inexplicáveis, inaceitáveis, usando as palavras, articulando-as com a beleza ou a feiúra que conseguimos acessar no nosso íntimo mais profundo. Penso nessa vontade como se eu estivesse atrás dessa máquina fotográfica, me afastando do objeto para conseguir foco. E penso que depois dessa imagem focada, dos tamanhos discriminados, dos limites divisados, eu gostaria de me afastar ainda mais. Um bom tanto. Bastante. O suficiente para deixar o tema virar um pontinho minúsculo, lá no fundo da minha paisagem. Olhar para ela com sua riqueza de camadas, suas sobreposições, misturas de cores, novas manchas. E deixar esse plano focado, considerado, mas lá no fundo, no infinito, onde ele ainda existe, mas, pelo menos por ora, não é mais tão importante.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Dra. Walkyria

Dra. Walkyria é pequenininha, tem uns cabelos longos grisalhos, sem tintura, presos num rabo de cavalo baixo que lhe cai pelas costas. Veste um jaleco branco e caminha lépida, mas com suavidade, pelos cômodos do consultório despojado. Não há objetos decorativos de design, não há música New Age, não há nada que possa distrair os sentidos, só o imprescindível, o indiscutível, sem maquiagem. Vou atrás dela até a sala enquanto me pergunto se deveria mesmo estar ali. Ela me foi recomendada por pessoas de que gosto muito e em quem confio, por isso resolvi tentar… Entro na sala e ouço o famoso – E então?… que os médicos costumam pronunciar no início de uma consulta. Conto sobre a minha vida, o cansaço, as duas filhas pequenas, o trabalho, o nervosismo, o marido. Ah, e tem um detalhe (que sei que não deve ter muita importância, mesmo, pois meu antigo homeopata, que me tratou por mais de vinte anos, sempre me olhou com aquela cara de enfado, como quem diz que eu só reclamo, que não sei dar limites, que me estresso por muito pouco, toda vez que esbarro no assunto): minha filha mais nova (na época com dois anos) anda acordando umas cinco ou seis vezes (!!) por noite. Abre os olhos, grita, chuta tudo, inclusive os pais, mas aparenta não estar acordada. Não aceita um colo, um carinho. Parece em transe. Nada do que fazemos consegue acalmá-la. Enquanto conto para a médica, me desculpo, justifico minha humanidade, minha falência como mãe, como ser humano, peço perdão pelo meu desconcerto, pelo meu desacerto. – Eu sei que não é nada, que deve ser loucura da minha parte, que os bebês acordam durante a noite (embora ela não seja mais exatamente um bebê, embora acordar de 5 a 6 vezes por noite já esteja completamente fora da normalidade), que essas olheiras são o mínimo que se pode fazer pelos filhos, enfim… Dra. Walkyria ouve, faz aqueles ran-rans de tempos em tempos e depois diz: – Eu não conheço sua filha, mas acho que ela pode estar com terror noturno. Terror noturno?! Eu imaginava gritos pavorosos pela madrugada, pesadelos terríveis, medos incontroláveis, visões indescritíveis. – Vamos dar um remédio para ela e ver o que acontece. Conforme a evolução, decidimos o que fazer. Para você, alguns exames da tireóide, só para ter certeza de que não há nada mais nesse seu cansaço, nesse seu nervosismo. Dois meses depois, passamos a dormir a noite toda outra vez. Quatro meses depois, perdemos o sono novamente. Após perambular por outros médicos (especialistas), realizar incontáveis exames, receber um diagnóstico terrível, me angustiar, sou operada para retirar um câncer da tireóide. Dra. Walkyria teve a paciência e a generosidade de olhar para mim com o olhar do imprescindível, sem maquiagem, sem preconceitos. Por causa dela me encontrei num lugar terrível, cuja silenciosa escuridão foi vital encarar, que eu não imaginava que pudesse existir dentro de mim. Sem ela, teria me perdido para sempre, teria encontrado lugar nenhum.

terça-feira, 31 de março de 2009

Carcinoma Papilífero

O nome bem que é bonito. É sonoro. Tem ritmo. Nunca vi (não tive coragem de encarar as lâminas arroxeadas), mas imagino, poeticamente, exclusivamente levada pela sonoridade, milhares de células em forma de asa de borboleta, agrupadas em pequenos leques que se juntam, formando longas espirais emaranhadas num nó bem apertado. Deve ser por isso que doeu tanto para fazer aquela maldita punção. Deve ser por isso que vivi tanto tempo com essa sensação de nó na garganta. Quando recebi o resultado do exame, me desesperei, entrei em pânico, mal pude acreditar. Eu tinha uma neoplasia cujo nome científico é carcinoma papilífero. Senti nojo de mim mesma. Nojo de carregar na garganta algo que poderia me matar e que nasceu do meu próprio corpo. Senti medo. Senti raiva. Senti culpa. Senti uma tristeza infinita. Senti o peso da solidão da morte.

O único dado positivo (metaforicamente falando, porque todos os dados clínicos eram, felizmente, muito positivos) é que neoplasia significa nova forma. De algum modo, há uma criatividade nisso tudo, a tentativa de ousar uma nova maneira, uma busca de vida nessa morte. Mas que Deus me livre e me proteja de usar minha criatividade assim, desse jeito auto destrutivo, em qualquer outra oportunidade. Amém.

PS: Isso aconteceu em 2006. Mas a elaboração, que agora virou texto, foi acontecer só hoje, mesmo.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Pares 2

Continuo colecionando pares (algumas sugestões de amigos, outros pensamentos meus…):
9. Esquerda e Direita;
10. Noite e Dia;
11. Verdade e Mentira;
12. Rico e Pobre;
13. Certo e Errado;
14. Cigarra e Formiga;
15. Bonito e Feio;
16. Em cima e Embaixo;
17. Medo e Coragem;
18. Dentro e Fora;
Nossa vida é o triângulo que criamos ao existirmos nesse entre.

domingo, 22 de março de 2009

Exame de Imagem

Sigo a enfermeira e entro numa sala exígua, de 1,0mx1,5m. Recebo um avental, umas pantufas, algumas instruções e uma ficha para preencher. A enfermeira me diz para aguardar que a técnica já virá me buscar. Tiro a blusa, visto o avental, as pantufas e começo a preencher a ficha. Terminei. Abro a porta e me sento à espera da tal técnica. A sala é toda branca, com uma luz fria, o chão de linóleo branco com umas manchinhas cinzas e marrons. Tudo combina com o avental marrom claro, quase bege. As únicas cores vivas da sala são minha camiseta cor de rosa e minha enorme bolsa amarela penduradas num gancho que sai da parede. O resto tem essa neutra monocromia hospitalar, inclusive eu, que começo a me sentir amalgamada com o lugar. Espero um pouquinho e aparece a técnica. Me leva para outra sala, comprime meus peitos numa máquina enorme, primeiro na vertical, depois na horizontal, tira chapas. Então fala para eu voltar para a salinha que logo virão me chamar para fazer os outros exames. Ótimo. Já vai acabar. Sento-me na cadeira também bege e espero. De vez em quando vejo alguma enfermeira passar, depois uma paciente de avental cinza, uma mãe com duas crianças que choram assustadas, outra paciente, outra enfermeira. Nada da MINHA enfermeira. Vejo um revisteiro no corredor, saio da sala e apanho uma revista sobre piscinas. Folheio. Os projetos são ruins, as fotos são ruins, as reportagens são ruins. Tento outra, sobre churrasqueiras. Mais um fiasco. O tempo está parado. Parece que nada vai acontecer nas próximas horas. Então me abandono aos meus pensamentos. Primeiro percebo que meu maxilar travou, que estou rangendo os dentes acordada. Resolvo pensar no blog, numa receita de comida, mas fico absolutamente tomada pelo pânico. Só me resta rezar. Gasto todo meu estoque de fé (se é que tenho alguma) rezando e pedindo a Deus, ou a quem quer que tenha algum poder de decisão nesta hora, para que os exames estejam todos ótimos. Já tratei os funcionários todos (desde o manobrista, a atendente, todas as enfermeiras, a técnica, com a maior educação). Como se isso pudesse garantir algum sucesso nos exames (além, é claro, de serem regras básicas de convivência). Mas na salinha meus gestos medidos, meu sorriso gentil não conseguem me garantir nenhuma tranquilidade. Rezo com mais força. Penso nas meninas. Daqui a pouco tenho de ir buscá-las na escola. O tempo congelado. Ninguém vem me chamar. Só sinto medo. E rezo. Não dá mais para ficar sentada naquela cadeira olhando a luz fria que desce do forro. O espelho do fundo não amplia o espaço, apenas me diz a verdade: você está horrível, cada dia mais velha, com olheiras e esse tom de pele amarelado. Deve mesmo estar doente. Não resta a menor dúvida. Dou as costas para o espelho, miro o corredor. Talvez caiba a mim descongelar o tempo. Saio da salinha e pergunto a uma enfermeira que está por ali se ela sabe de alguma coisa, pois tenho que sair para buscar minhas filhas na escola daqui a pouco (ainda bem que tenho minhas filhas!). Ela vai investigar, diz que volta já com notícias. De novo eu, o espelho, meus pensamentos. O rosa da minha blusa é bonito, tem um quê de amarelo, parece uma pétala de flor. Já o amarelo da bolsa, apesar de bonito também, com um toque de magenta, como gema de ovo, enfatiza minha doença refletida no espelho e na minha cabeça. Aquela doença que certamente me acomete e da qual vou morrer. Rezo, rezo, rezo. O tempo parou e minhas filhas já devem estar angustiadas a minha espera. Se ninguém aparecer vou acabar berrando, vou chutar a porta e sair pelos corredores gritando que esse laboratório é uma merda. Respiro. Respiro e rezo. E ignoro o espelho. E suas reflexões. Não vou sair berrando por aí, nem vou chutar a porta ou brigar com as enfermeiras. Vou chorar porque não há mais salvação. Estou condenada. Só não me disseram ainda. –Senhora Márcia, vamos para a sala de ultrassom?, fala a MINHA enfermeira sorrindo solícita. Devolvo um sorriso desajeitado, quase triste, de vaca indo para o abatedouro, e saio atrás dela para a sala de ultrassom. Sigo as instruções, deito-me e espero pelo médico. Pelo menos agora a sala é bem maior, a luz é mais quente e não há espelhos. Apenas um monitor de onde verei ao vivo minhas doenças internas sem que o médico me diga NADA. Continuo rezando. Um Pai Nosso, uma Ave Maria, outro Pai Nosso. O médico entra. O exame começa. Vejo as imagens em P&B passando na minha frente, continuo rezando, mas tento ir mais distraída. – Está tudo bem. Não vejo nada com que se preocupar. O médico se levanta, aperta minha mão e sai. Finalmente o tempo descongela. Respiro aliviada. Volto para a salinha exígua, visto minha blusa cor de rosa, pego minha enorme bolsa amarela e me olho no espelho. Já posso refletir. Já posso existir novamente. E há tempo de sobra para pegar as crianças.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Quase Razoável

Patricia me deu a ideia e eu resolvi botar no ar. De vez em quando a gente nem acredita que seja capaz de dizer ou fazer certas coisas. Depois percebe que vive fazendo aquilo o tempo todo consigo mesmo. Neste caso o que houve foi um mal entendido, mas a expressão ficou e ainda por cima na minha conta (claro, fui eu que, involuntáriamente, inventei). Quarta-feira à noite. Aula de joalheria. Estávamos lá, a professora, eu (a assistente) e alguns alunos. Eu atendia os “casos” mais simples, que não exigissem um conhecimento tão profundo da técnica, mas procurava caprichar, ser exigente sem ser carrasca e ser compreensiva sem ser condescendente. Eis que uma aluna me pergunta se os primeiros passos do acabamento de sua peça estavam bons. Pego a pequena jóia na mão, olho com bastante cuidado e vejo alguns risquinhos. Nada que impedisse a peça de ir para o polimento (tendo em vista que era uma das primeiras, senão a primeira, que ela executava). Então digo a ela: está quase (perfeito, penso, mas revejo o pensamento e considero toda a questão didática que passava pela minha cabeça) razoável, é o que me sai da boca. Quase… razoável. A aluna era tímida, demorou uma semana para me dar um toque: Márcia, eu sei que vocês gostam de mim, mas você não precisa dar tanta volta para me falar a verdade. Tento me explicar. Inútil. Já virei a chacota da turma. Damos boas risadas, passamos a usar a expressão frequentemente, vira um slogan: Está quase razoável, quase razoável…

segunda-feira, 16 de março de 2009

Finalidades

Recebi, nas últimas semanas, boas notícias de amigos e amigas que acessaram o blog e deram retorno carinhoso via e-mail, telefone ou pessoalmente. Alguns se identificam com o corte de cabelo, outros com o banho de jacaré, com o bolinho de bacalhau no boteco, ou com a dificuldade e a poesia de viver entre os pares. É gratificante ver e sentir a disposição dos amigos comigo. Mas comecei, nesse movimento, a me preocupar, supondo que tais visitas impliquem uma expectativa de bons textos, ótimas ideias, bom humor, sagacidade, que talvez eu não consiga cumprir. Então, para minha própria conta e tranquilidade, resolvi botar no papel a finalidade desse blog.

Quando inaugurei o Maricota•MG, decidi que os textos deveriam ter, mesmo os mais curtos, mesmo os não terminados, mesmo os mal escritos, alguma ideia que extrapolasse a mera descrição de um evento vivido, ouvido ou presenciado, mas que pudessem atrair o leitor não apenas por essa ideia, como pelo contar de algo que lhe fosse próximo. Também pensei que não gostaria de ficar na simples divagação, queria evitar fazer aquela filosofia rasa de botequim (geralmente deliciosa, mas quando regada a um bom copo de cerveja ou de vinho, petiscos, cercada de vozes e sob uma luz suave) e porque para mim as vivências aguçam meus pensamentos muito mais do que partir da pura abstração. Outra condição, personalíssima, foi a de evitar uma obrigação profissional com o blog. Assim, posso postar somente coisas que eu sinta que de fato me digam respeito e ter com ele uma relação bastante prazerosa, embora nem sempre fácil. Apesar do nome divertido, do espírito de cronista e da escrita leve, esse blog é muito pessoal, flutua conforme meu estado de espírito e, por conta disso, nem sempre será tão bem humorado quanto alguns posts passados. Imagino que mesmo um José Saramago, um Guimarães Rosa, ou outro gênio da literatura, sofra com as alterações de humor, com seus dias de maior ou menor inspiração ou vontade. Logo, comigo não haveria de ser diferente (não por conta da genialidade, é claro, apenas da humanidade em comum). Espero que vocês possam compreender minhas inúmeras limitações (no manejo das palavras, na exposição de temas demasiado íntimos) e ainda assim, em minha companhia, sentir-se tocados pelos textos e vivências. Essa é, afinal, a sua/minha finalidade.

quarta-feira, 11 de março de 2009

PS sobre a loucura

Lembrei-me de uns versos do Fernando Pessoa sobre a loucura (poderiam estar lá no final do Corte Radical):

Só a loucura é que é grande!
E só ela é que é feliz!

Lindona!

Tenho sido perguntada acerca do meu novo visual. Quem não viu anda curiosíssimo para ver e dar sua opinião. Eu adorei o novo corte. Tem todas as qualidades que eu queria, é bem moderno, feminino e diferente. Sobre a opinião dos demais, fora minha filha mais nova, que enfaticamente DETESTOU, acho que foi quase unânime, ficou ótimo. De agora em diante vou sair por aí ouvindo a massa gritar: LINDONA! LINDONA! LINDONA!

PS: Assim que for possível, posto uma foto do novo look.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Corte Radical

Quarta-feira. Num ataque de “cinco minutos” resolvo cortar o cabelo. O cabeleireiro chama-se - nome altamente sugestivo - Corte Radical. Quero um corte desigual, com pontas, como as minhas pontas soltas que não consigo conectar. Quero um corte charmoso, feminino, mas com personalidade. Digo isso para a moça e ela me pergunta se pode fazer um corte assimétrico. Digo que sim, que fique à vontade para fazer o que quiser no comprimento e na forma, desde que tenha as qualidades que pedi. Ela pega a navalha e começa a cortar… Diz que raramente viu alguém com tanta coragem de deixar o cabeleireiro ficar tão livre no corte. Sinto-me poderosa. Sou mesmo corajosa. Mas as palavras de um amigo para outro amigo na adolescência ficam martelando minha cabeça: “A Márcia só vai deixar de ser louca quando parar de cortar o cabelo desse jeito”. Enquanto devaneio, a navalha se aprofunda nos meus fios, chega perto da nuca, desfia o topo, o lado, desbasta minha franja, bem curta, bem leve. Tremo. Mas não vou desistir agora. Fiquei com o mesmo corte de cabelo anos a fio, esperando minha loucura passar. E ela não passou. Porque não é loucura. Sou apenas eu. Conto para a cabeleireira sobre minha adolescência. Digo que hoje vejo o quanto o comentário era uma besteira (mas não conto a ela que volta e meia ele ainda me persegue). Ela ri e acrescenta: pois é, isso não tem nada a ver, porque quando a gente corta o cabelo e muda o visual, cria um problema real com o qual tem que lidar. Assim, pode parar de viajar naquelas eternas crises existenciais. Também é. Acho que quero expressar quem eu sou (ou como estou) e faço isso tanto quando escolho uma roupa como quando ponho uma música para tocar ou corto o cabelo. Difícil é os outros aceitarem que a gente é assim mesmo e que isso não é loucura, são só as ondas, os pensamentos, as imprescindíveis metamorfoses da vida de cada um. Emprestando as palavras do Raul: Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.

sábado, 7 de março de 2009

Leite derramado...

Outro dia fui assistir a Milk, o filme sobre um ativista gay chamado Harvey Milk, dirigido por Gus Van Sant e magistralmente interpretado por Sean Penn. Tenho certeza de que não achei o filme ruim, mas já não sei dizer se ele é bom, muito bom ou apenas razoável. É que o Sean Penn no papel de Milk me lembrou tanto um amigo queridíssimo, morto no ano passado, que eu não consegui mais assistir ao filme como se ele fosse simplesmente um filme. Ficava vendo o Chico lá o tempo todo. As expresões faciais, o jeito de rir, a presença de espírito, um certo deboche, tudo me lembrava o Chico. Saí do filme aos prantos, subi a Rua Augusta soluçando e viajei no metrô (pareceu levar horas) até o Sumaré tentando me esconder dos outros passageiros. O Chico era um desses amigos que fazem a gente se sentir bem no mundo, apesar do mundo. Inteligente sem ser pedante. Sensível sem ser chato. Convicto sem ser doutrinador. Um par. Dividíamos idéias, ideais, trabalhos de faculdade. Ficávamos boas horas conversando em frente à sua casa sempre que eu lhe dava uma carona. E hoje, quando lavo a pia da cozinha, irremediavelmente lembro-me do Chico. Um dos poucos homens que não deixavam aquele restinho de louça sujo dentro da cuba. Tinha que lavar tudo, inclusive a pia, e as coisas gordurosas sempre por último, para não engordurar o resto. Falando assim até parece que ele tinha manias… Nada que todos nós não tenhamos. Ele era meu amigo, ele era adorável. Só isso. Só?...

segunda-feira, 2 de março de 2009

Sapatos

Vou sair hoje à noite. Já escolhi um vestido levinho e arrumado, mas não consigo me decidir quanto ao sapato. Eu e uma amiga vamos estacionar o carro no alto do morro, nas franjas do bairro descoladinho da zona oeste da cidade e de lá vamos andar até um boteco para comer alguma coisa e beber uma cerveja. Fico na dúvida a respeito do sapato que devo usar. Gostaria de ir de salto, me deixa um pouco mais alta, encomprida minhas pernas (um pouco grossas para meu gosto) e me dá aquela confiança de que tanto preciso agora. Mas talvez o melhor seja ir de tênis. Vamos andar, imagino que peregrinar pelos bares até encontrar algum lugar que nos agrade pelo menos um pouquinho e que tenha uma mesa minimamente decente vaga. Quem sabe uma sandália rasteira? É confortável para andar e não vai me deixar os pés quentes. Mas a minha já está muito velha, nem é tão confortável para uma longa caminhada, não sei… A única coisa certa é que vou sair com minha amiga para bater papo no bairro moderninho da cidade. Que boteco será, quantas quadras vamos andar, quem iremos encontrar, que rumo nosso papo terá, o resto todo são as incertezas naturais do programa. Enquanto tento me decidir quanto ao sapato, imagino o atual momento da minha vida: incerto. Tampouco sei o sapato mais adequado para ela. Escolho o tênis. Espero ainda andar muito, confortavelmente, em qualquer terreno. Espero ainda percorrer muitos caminhos interessantes, encontrar aventuras, danças, correrias, passeios. Escolho o tênis! Minha amiga olha o conjunto vestido/tênis. Me acha ousada. Por isso, escolho o tênis.

domingo, 1 de março de 2009

Tonalidades, sabores e sonoridades

É difícil conviver com nossos paradoxos interiores. Talvez por isso eu estivesse com os tais pares, de um post passado, na cabeça. Alguma coisa ali (ou melhor, aqui dentro) me diz que eu gostaria de ser isso ou aquilo, e só, definitivamente. Pender, finalmente, para este ou aquele lado, me transformar num recorte bem delimitado, ser uma cor explícita, uma nota afinadíssima. Mas a vida vai me mostrando que não dá! É pouco. São lugares pequenos e desconfortáveis demais para toda uma existência. É preciso ter coragem para se equilibrar e caminhar no fio tenso dessas polaridades, para viver suas infinitas tonalidades, seus sabores sofisticados, suas sutis sonoridades.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Brincar

Dia desses fui tomar banho de banheira com minhas filhas. Ficamos lá, feito jacarés, mergulhando devagarinho e soltando bolhinhas na água tépida, mais para fria, pois fazia um calor imenso. De repente a minha mais nova diz, puxa, aqui tá tão gostoso que nem dá vontade de brincar. (Por brincar entenda-se ir para o quarto mexer com as bonecas, levá-las para a escolinha imaginária, pintar, desenhar, enfim, o que der na telha). De vez em quando as crianças nos dão esses presentes-surpresa. Praticamente todas as atividades infantis passam pelo brincar. Elas buscam o prazer mais puro, mais essencial. Abrir mão da brincadeira, no caso da minha filha, significava que o prazer que ela sentia na minha companhia e na da irmã, naquele momento, era ainda maior do que o que ela sente brincando, algo que ela faz o tempo todo. Adoro ser mãe dessas minhas duas filhas tão preciosas. (Tudo bem, eu sei que ainda não cheguei nos pedregulhos da adolescência... mas quem sabe quais as coisas boas que a vida ainda me reserva?).

Pares

Há dias venho pensando em pares. Pares tensos, contraditórios. Pares limites. É dentro deles que vivemos grande parte da nossa existência, a não ser nas poucas vezes em que nos deixamos ir completamente para um ou outro lado. Sem eles, imagino, não haveria vida, não haveria desejo. Abaixo uma pequena lista (depois desenvolvo as idéias e aumento a lista):
1. Vida e morte;
2. Homem e mulher;
3. Branco e preto;
4. Começo e fim;
5. Amor e ódio;
6. Amor e morte;
7. Alegria e tristeza
8. Guerra e paz...

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Caixas...





Meu TGI - Trabalho de Graduação Interdisciplinar (antigo nome do trabalho de conclusão de curso, lá na FAU) era uma caixa. Uma caixa-quebra-cabeça, fruto de uma pesquisa (modesta, é claro) a respeito de casas humanas, seus nomes, seus deuses, seu funcionamento, suas simbologias. Fechada ela é um cubo. Aberta, um quadrado. Dentro dela pus muitas sensações, cores, sons, perfumes, idéias, imagens, que eu associava a uma casa. Foi muito divertido bolar seu funcionamento, sonhar e caprichar no seu conteúdo e depois executar as coisas todas a tempo de apresentar e me formar. Tudo acompanhado por muita gente, discutido com a orientadora, os amigos, a família, no boteco, nas rampas da FAU, no departamento de História, na biblioteca. Na época eu vivia com uma mania de fazer origami, montar cartões que se abriam em bolas, semiesferas. (Queria ter conseguido abrir uma casa...) Daí veio a idéia de fenda, fresta, do espiar pelo buraco da fechadura, ver um pouquinho do que se passa do outro lado e imaginar todo o resto. No dia da apresentação (ou defesa, se preferir) agora me dou conta de que a banca era toda feminina. A orientação era da Ciça e acabamos convidando mais duas outras mulheres para a banca. Foi um ritual emocionante, as cadeiras em forma de meia-lua, o texto escrito em papel kraft colado na parede atrás e em cima da mesa, entre o texto e a platéia, a caixa, esperando uma visita, um olhar curioso. Poucas pessoas sabiam como a caixa funcionava, e foi uma experiência bastante divertida ver as professoras da banca (fora a Ciça, que sabia de tudo) discutindo qual a "porta" que deveriam abrir para chegar ao final. Foi um dos dias leves da minha vida. Eu tinha a sensação da missão cumprida, e bem. Estava satisfeita comigo mesma.
Hoje, escrevendo, tento abrir mais algumas das minhas caixinhas. Algumas são caixinhas difíceis, meio bagunçadas, mas não menos cheias de imaginação, curiosidade, vida. Tenho certeza de que dali/daqui sairão fantasmas, fantasias, bolsinhas, paninhos, retalhos, histórias, viagens, idéias esquecidas, mofadas, idéias ultrapassadas, idéias surpreendentes, sonhos, faíscas. O meu quebra-cabeça.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Ovo quente 2 ou in vino veritas

Ainda ontem, saí com amigos queridos. Fomos a um lançamento cheio de gente bacana, num bairro pra lá de “bacana” de São Paulo. Depois, resolvemos parar num boteco para comer alguma coisa e bater o papo de verdade, já que lá no lançamento só dava mesmo para fazer uma social (assunto pra outro artigo). Comemos bolinhos de bacalhau, pastéis, tomamos uma cerveja e uma água. Quando vem a conta, OPA! O bolinho de bacalhau tinha preço de ouro, sem falar nos pastéis. Nessas horas, a gente, que é bem-nascida, educada e analisada (te devo essa, F) resolve não falar nada, sai de fino e diz pra gente mesma que NUNCA mais volta a esse lugar onde os preços são um absurdo. Pois bem, só que ontem, bem ontem(!), minha amiga já tinha tido um dia difícil, estava com os nervos à flor da pele ou, como ela mesma disse, sem qualquer auto-censura, já estava bêbada antes mesmo de beber o primeiro copo. Depois de falar tudo o que veio à cabeça para alguns dos ilustres convidados no lançamento, quando viu o preço dos “quitutes” no tal “boteco”, não se conteve. Primeiro chamou o garçom e perguntou, já em tom alterado, se aquele era mesmo o preço dos bolinhos. Quando ele respondeu que sim e que afinal eram DOZE bolinhos, ela fez as contas num átimo, de cabeça (imaginem que ela chegou bêbada antes de beber e depois ainda bebeu um tantão, fazer a conta de cabeça foi mesmo admirável!) e falou que não acreditava que aquele mini-bolinho de bacalhau podia custar TRÊS reais. Daí, lógico, chamou o gerente. Então o bolinho tem ESSE preço? (Pergunta retórica, é óbvio). Ok, EU NUNCA MAIS VOU APARECER NESSE LUGAR! A lucidez da embriaguez, da falta de censura é realmente impressionante. A gente ria de dar nó andando pela rua, enquanto ela se justificava, sem qualquer necessidade. Estava mais do que explicado. Viva a falta de censura! Viva a lucidez! Viva Baco! E olha que eu só bebi água, hem!

Ovo quente

Ontem a lição de casa da minha filha mais velha era escrever uma receita de comida que ela gostasse e que conseguisse escrever no caderno. Sugeri algumas coisas que ela não topou até que achou bacana dar a receita de ovo quente. Isso mesmo, de OVO QUENTE! Parece meio bobo dar uma receita de algo tão simples e prosaico. E no entanto, como podemos fazer qualquer coisa dos mais variados modos, desde as mais simples até as mais complicadas, pensei que talvez não fosse tão bobo assim. Ninguém duvida que um prato sofisticado seja cheio de sutilezas, malícias, jeitinhos. Mas é difícil imaginar isso num simples ovo quente, ou numa mulher com um jeito bem resolvido, ou numa árvore frondosa. Ler a receita do ovo quente da minha filha, em que ela diz até como quebrar a casca e quando dar a primeira colherada me fez pensar que andamos vendo pouco essas sutilezas, esses jeitinhos, essas veredas escondidas nas coisas mais banais da vida.